
"não sei como começar esta carta, nem sei se ela fará algum sentido, mas preciso de te transmitir tudo o que ficou por dizer, antes que rebente de mágoa e de tristeza, antes que os dias se sucedam num absurdo tão vazio e idiota que perca a vontade de viver. tenho à minha frente o caderno que te comecei a escrever, uma espécie de diário da minha paixão contida por ti, aquele que nunca quiseste ler, embora me tivesses alimentado a esperança de um futuro longínquo, que um dia talvez pudéssemos partilhar, um projecto de vida futura que nunca passou da minha imaginação ou do teu delírio. mas de que vale o amor sem um futuro sonhado, mesmo que nunca se concretize? toda a nossa existência tem por condição a infidelidade a nós próprios. fui muitas vezes na minha vida, infiel aos outros, mas sobretudo a mim própria, quando me recusava a escutar o meu próprio coração. olho para trás e vejo com tristeza que os meus erros contaminaram as recordações do tempo em que ainda não os havia cometido e isso faz-me sentir culpada de coisas que não fiz. por isso aplico a mim mesma uma espécie de autoflagelação, esperando que a dor infligida apague a original e, quando a segunda se esfumar, pouco mais reste da primeira, a não ser o sabor eterno e amargo de uma perda irreparável. o primeiro erro que cometi foi ter-me apaixonado por ti. não sei ainda hoje explicar o que me aconteceu. é como se de repente tivesse saído de dentro de mim própria e assistisse ao desenrolar da paixão que crescia desmesuradamente, sem quereres ou saberes, tenhas tocado nos pontos cardeais da minha insegurança e deles se tivesse acendido uma luz que segui, cega e surda, como os insectos numa noite de verão à volta de uma lâmpada que alguém se esqueceu de apagar. mas o amor é mesmo assim: absoluto, estúpido e tudo menos sensato. ou talvez me tenha apaixonado apenas pela tua imagem e, quando te tornaste real aos meus olhos, te tenha adaptado a um ideal humanamente perfeito, à luz do meu desejo. de qualquer forma, apaixonei-me por ti e esse foi o erro primordial, o primeiro de todos, provavelmente o único importante. os outros erros nunca se teriam dado se este primeiro não tivesse crescido como uma bola de neve perdida numa avalanche. o segundo erro, e deste assumo toda a culpa, foi não te ter escondido que te amava. queria-te tanto que pensei que isso te obrigaria a amar-me. como fui burra e infantil! o amor e a gratidão nada têm a ver um com o outro, embora ambos mascarem estados de afecto. o amor não se procura. simplesmente vem-nos parar às mãos e só amamos o que é diferente, mesmo que nos pareça de algum modo semelhante. tu tens essa diferença, que me cativou. mas devia ter aprendido a escutar os teus sinais e a decifrá-los, antes de me denunciar com os meus, bem menos subtis, bem mais temerários. sou uma guerreira, o amor é a minha arma. o meu coração é o meu escudo, avanço sem lança nem capacete, caio e levanto-me as vezes que for preciso, mas não paro nunca. a não ser que o caminho se feche. quando te foste embora, percebi que a tua porta se tinha fechado para sempre. o coração quando se fecha faz muito mais barulho do que uma porta, e acredita, oiço ainda o barulho do teu silêncio, como uma pedra encostada à garganta. mas serviu-me para aprender algumas coisas, entre as quais que estar quieta também é uma acção. e ao ficar quieta, consegui parar de sonhar, e comecei a viver cada dia um atrás do outro, a sair para a rua e respirar o ar aquecido pela luz do sol como uma dádiva de deus. quando sonhamos muito corremos o risco de deixar de viver neste mundo, passamos para outra dimensão e não raras vezes transportamos connosco aqueles que amamos. e aquilo com que sonhamos, passa a ser nosso desejo e é em função disso que respiramos, vivemos, adormecemos e acordamos. o meu terceiro erro, já te disse qual foi. caímos num duplo equívoco: nunca acreditaste que eu gostasse de ti e sempre gostei; nunca acreditei que não me amasses e afinal não chegaste sequer a gostar de mim. no amor, os homens são paranóicos e as mulheres obsessivas. eles não acreditam no amor delas e elas não admitem a falta de amor neles. amei-te de uma forma desajeitada, arrebatadora e incondicional, sempre querendo e desejando o melhor para ti. o melhor, só tu mesmo poderás encontrar e hoje estou certa que não passa por mim. cada vez mais acredito que amar é dar e tudo o que não é dado, perde-se. com a morte deste amor por ti, morre também uma parte de mim, algo cujos contornos não consigo ainda delinear mas que com o tempo perceberei, quando a alma apaziguada fechar as feridas desta minha dor derrotada e passiva perante o teu silêncio e a tua mascarada indiferença. chegámos ao fim do caminho. a partir daqui todas as palavras serão inúteis. nunca saberei até que ponto ages com o coração ou apenas com a cabeça. até que ponto te entregas ou apenas jogas. até que ponto sentes e ages, ou apenas observas. e é por nunca ter sabido quem és, que um dia te conseguirei esquecer."